domingo, 17 de abril de 2016

Depoimento de Juca de Oliveira dado ao jornal O Democrata

“São-roquices
São Roque por Juca de Oliveira
Tenho consciência de que sou um caipira de São Roque. Pelo sotaque, a paixão pelo verde, pelos animais e as marcas de infância que permanecem intactas, embora distantes. As vinhas, o vinho, os alcachofrais, os casarões barrocos da antiga praça da matriz. Bom, pra não desfilar tudo que me apaixona na minha amada São Roque, vou me fixar apenas numa fazenda onde passava férias quando criança: a fazenda do Carmo do meu tio Juca e o Quilombo do Carmo, onde famílias remanescentes da escravidão construíram suas cabanas em torno de uma igreja. Eu sempre ia pra lá com um grande amigo, o Zé do Nino, ainda hoje o cidadão mais popular e querido de São Roque. Íamos de ônibus até Vargem Grande e, depois, na carroça com que o Tino vinha nos buscar. Não largávamos o Tino, o Francisco e o Juquinha, que cuidavam das roças e do gado, os três nascidos na fazenda. E lá íamos na carroça morrendo de felicidade, cruzando sítios e fazendas, imensos descampados, brejos onde cantavam os avinhados que já não cantam mais. E finalmente a casa grande. Imponente lá no alto, paredes de taipa, largas de mais de metro, janelões e assoalho de madeira de lei, telhas imensas. Tio Juca, do alpendre, acompanhava nossa chegada com um velho binóculo e nos recebia rindo, feliz com tia Virgínia ao lado. Abraços, beijos, o quarto arrumado, as camas preparadas, o perfume das romãzeiras, as galinhas d’angola cantando alucinadas, marrecos, os cães veadeiros, rolinhas e andorinhas nos beirais, a mesa posta para o almoço. A comida em panelões de ferro sobre o fogão de lenha que jamais se apagava e onde nos servíamos. Manequinho, um dos compadres, vinha trazer milho para os burros, fazer compras e almoçava com a gente, alternando histórias deliciosas de pesca e caça e também do “coisa ruim” infernizando cavalos nas picadas. Depois do almoço Manequinho selava a mula e se despedia.
– Intão inté cumpadi…
Mas o convite do tio Juca ia adiar a cavalgada:
– Antes vamos jogar uma partidinha de escopa, compadre, não custa, depois você vai…
Manequinho, negro simpático e amoroso, não resistia.
– Intão só uma, cumpadi…
E lá ficavam jogando escopa entretidos e felizes. Zé do Nino e eu, já integrados no cotidiano, íamos com o Tino soltar as vacas no pasto a cavalo, ou fazer fubá no moinho da fazenda. Descíamos até o lago, eu abria a comporta, a água escorria pela bica e enchia as aletas da roda d’água assustando as saracuras. Tino derramava milho nas mós e o Zé ensacava o fubá macio e perfumado. Fubá ensacado, era mergulhar no lago e nadar aos gritos de alegria até começar a escurecer. Como era difícil sair daquela água cristalina com sei lá quantos milhões de lambaris, traíras e carás nadando lado a lado! E voltávamos para a casa grande com a sensação de dever cumprido. A partida de escopa no fim. Manequinho se despedia com seu delicioso:
– Intão inté, cumpadi…
Mas tio Juca não desistia:
– Mas compadre, já é quase noite. Sorte a mula, a gente janta, joga mais umas queda e amanhã cedinho ocê vai…
Manequinho não resistia, desencilhava a mula, soltava no pasto e voltava pra escopa. No dia seguinte, acabado o café, tio Juca atacava de novo, o tom súplice:
– Compadre Maneco, veja só. Agora já é quase a hora do almoço, você fica pra almoçar, a gente joga umas escopas e depois de almoçado você vai…
E nesse passo tio Juca segurava Manequinho semana inteira, encilhando e desencilhando a mula. Entravam férias, saiam férias e Manequinho sempre lá, encilhando e desencilhando a mula… Íamos com frequência ao Carmo, ouvir a banda do quilombo, rezar na igreja, acompanhar a procissão e prosear com aquela gente querida e bem humorada, um nunca acabar de histórias maravilhosas de caçadas, pescarias, umas tristes do tempo da escravidão. Não me lembro de uma rusga, um lamento. Apenas temas simples sobre integridade, honra, solidariedade. Só recentemente comecei a desconfiar de que aquilo teria sido parte considerável da minha formação. O contato desde criança com esses trabalhadores nascidos na fazenda, queridíssimos e inesquecíveis amigos descendentes de escravos, e a convivência com tio Juca e os negros do quilombo, me levaram a convicção de que todos os seres humanos (e não humanos) são absolutamente iguais, e de idêntico valor. Para exemplificar, apanho abelhas, vespas e marimbondos presos nas vidraças e os liberto sobre alguma folhagem para que voltem aos seus enxames. E a certeza de que depois de salvos nos tornaremos amigos para sempre. Hoje quando penso no Zé do Nino, ou José Carlos Dias Bastos, portentoso conterrâneo amado por todos, sua religiosa dedicação à cidade, aos cidadãos que o tem como amigo, irmão, pai, protetor, organizando festas, desfiles, cuidando com paixão das tradições de São Roque e sua história, tenho certeza de que essa entrega, esse desprendimento, a espontânea generosidade desse modelo de homem foram forjados na nossa convivência com aqueles inesquecíveis amigos remanescentes da escravidão no Quilombo do Carmo. Felizmente eu também fui contaminado.
A coluna São-roquices tem a honra de reproduzir, com o consentimento exclusivo de Juca de Oliveira e do Sesc São Paulo, a recente e significativa crônica “São Roque por Juca de Oliveira”, que o ator e dramaturgo são-roquense escreveu para a seção “Memórias Paulistas”, do portal do Circuito Sesc de Artes.
Juca de Oliveira assegurou: “É uma imensa alegria a publicação dessas memórias nas páginas de O Democrata e, especialmente, na coluna São-roquices. Que os leitores recebam esse texto como uma demonstração do meu afeto pela cidade e pelos são-roquenses”.”
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Simone Judica é advogada, jornalista e colunista de O Democrata (simonejudica@gmail.com).
Foto: Portal Circuito Sesc de Artes

sábado, 4 de abril de 2015

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Cinema São José e História de vida de Iris Barioni

Faz algum tempo que não atualizo as postagens neste Blog, por falta de tempo mesmo, já que esse é um trabalho minucioso.
Revisitar o passado nos leva a arejar os cantos da memória e cá estou novamente, dessa vez com as memórias do Cinema São José. 
Hoje inicio essa história e  logo mais adicionarei trechos do depoimento da Iris Barioni, quem entrevistei para refazermos a memoria desse importante espaço para a cultura de São Roque, nos anos 50 e 60.
No começo de tudo, no mesmo local ficava o Teatro São João, cuja entrada era pela pequena rua Rosina de Oliveira. 



Com o tempo tornou-se cine São José, todo reformado de acordo com os conceitos modernistas da arquitetura.



                                                         Foto: Denise Boschetti

O Cine São José foi um marco importante, numa época em que os Cinemas de rua eram comuns e geralmente tinham construções glamourosas. Havia ainda o Cine Central, que ficava na Praça da Matriz  e também merece uma revisita a ser feita oportunamente

                               


Com o tempo os shoppings centers foram construindo cinemas menores e apresentando filmes mais comerciais, o que praticamente fez extinguir com os cinemas de rua. 
Em São paulo por exemplo, há poucos e o famoso e também querido Cine Belas Artes foi fechado e passou por três anos de processo para conseguir sua reabertura, cuja reforma será feita pelo empenho de empresários e financiada por  Bancos e outras fontes de recursos. O imóvel também é propriedade particular.
O mesmo poderia acontecer com o Cine São José, ha anos fechado se deteriorando, numa cidade em que, ainda há poucas opções culturais. Com certeza é um espaço que esta na memoria afetiva de muitos são-roquenses, que vivenciaram a época gloriosa desse cinema.


Abaixo mais fotos e o depoimento de Iris Barioni

Meu nome é Iris Barioni.



Nasci em São Roque na Rua Rui Barbosa, onde eu moro até hoje, no dia 1 de outubro de 1928.
Perdi meu pai com quatro anos, ele se chamava Aristides Barioni e minha mãe Maria Pedracci Barioni, meu pai é descendente de italianos, e também italiano de nascença, nasceu em Adria e minha mãe filha de italianos também, nasceu em São Paulo, no Bom Retiro, há 80 anos.
Meus avós maternos chamavam-se Luiz e Teresa e meus avós paternos chamavam-se Teresa e Pedro, as duas avós chamavam-se Teresa e as duas por sinal eram duas italianas daquelas, que gostavam de saber tudo o que acontecia, não saiam de casa, mas sabiam tudo o que acontecia em volta e na cidade. E elas atraíam pessoas, que vinham lhes contar tudo. Elas não saiam de casa porque tinham problemas nas pernas, a materna tinha elefantíase, mas em compensação o radar funcionava e elas realmente sabiam tudo o que acontecia em volta.
Meu pai era funileiro, em casa tinha um barracão muito grande no quintal, aqui na Rua Rui Barbosa, que hoje é uma parte onde está o cinema e ele fabricava calhas e todo tipo de conserto. Eu não me lembro, mas minha mãe contava, que eles depois de casados trabalhavam juntos, faziam canequinhas de latas de leite condensado, de massa de tomate. As pessoas levavam e eles punham cabo pra fazer caneca.
Quando a bacia, que não era de alumínio, nem de plástico, o material chamavam de folha e quando essas furavam as pessoas levavam pro meu pai soldar.
Minha vó materna se criou em São Paulo e veio já moça pra São Roque, ela contava que meu avô vendia frango, ovos, nas casas, comprava e revendia, lidava com comércio.
Os avós paternos não me lembro com o que trabalhavam.
A origem do nome Barioni é italiana, meu pai é de Adria e ainda tem Barioni por lá, segundo algumas pessoas que viajaram pra Itália e nos contaram.

Família



Minha mãe veio com a família de São Paulo e se instalaram na rua Rui Barbosa também, mais pra baixo de onde é nossa casa.
Meu pai era viúvo, quando conheceu minha mãe e tinha dois filhos com a primeira mulher, Vasco e Neris. Vasco tinha 4 ou 5 anos quando a mãe morreu e a Neris deveria ter uns 2 anos.
Meu pai estava perdido, viúvo, com a mãe doente, minha avó Teresa, que morava com ele e não podia cuidar das crianças, então meu pai, acho que conheceu minha mãe, gostou, se interessou e casaram e desse casamento nasceu Eu e mais um irmão, o Valdemar, que já é falecido, então eu sou meia irmã de Vasco e de Neris, mas esse meia irmã, acho que vale por uma e meia, porque nós crescemos todos juntos e minha mãe como madrasta de Vasco e da Neris, sem querendo incensar minha mãe, ela foi uma pessoa maravilhosa. Era uma mãe mesmo, eles tinham um respeito e um amor por essa mãe, que foi a que conheceram, pois a verdadeira eles não conheceram. Não tinha diferença, fomos criados todos como uma família.
Quando Vasco tinha 18 para 19 anos meu pai morreu, muito novo ainda, com 48 anos. Moramos toda vida nessa casa, todos juntos, não tinha separação. Então Vasco ainda moço, mas como filho mais velho fica tomando conta da família eu com quatro anos, Valdemar devia ter uns 13 e a Neris era mocinha, então as coisas pioraram, foi um período difícil, porque antigamente quando o marido morria a mulher não tinha bens, dinheiro, nós tínhamos uma casa pra morar, foi o patrimônio que meu pai deixou e vale muito graças a Deus.
Meu pai sempre dizia tem que ter uma profissão, porque não era comum continuar estudando. Mas Vasco terminou a escola e foi aprender a profissão de funileiro e passou a trabalhar e ganhar a vida como funileiro. As coisas ficaram muito difíceis, Vasco se viu com menos de 20 anos como chefe da família e ele era muito sonhador, artista e minha mãe dizia que foi uma época muito difícil, mas passou, minha mãe ajudava também fazendo as canequinhas, trabalhou bastante e foram vencendo as dificuldades.
Depois de certo tempo, Vasco ficou sócio do Cinema aqui na Praça (Cine Central) e a vida aos poucos foi ficando bem melhor. Eu já era maior, fui trabalhar também, então as coisas foram se ajeitando.

Infância/Estudos

Eu nunca gostei de estudar, não gostava de ir à escola, sou muito grata a Vasco, que me colocou no colégio São Jose, eu fui uma das primeiras pessoas matriculadas no antigo colégio São José. Vasco me matriculou e era numa casa na Avenida Tiradentes, a lembrança é vaga, não havia o Colégio ainda, as freiras vieram e se instalaram em casas. Uma das casas era a da Dona Ólida, e nessa esquina era um casarão bem rustico e tinha umas aulas, porque tinha classes aqui e em outros lugares, na igreja de são Benedito também tinha uma classe, até que construíssem o colégio, porque não foi fácil, a criançada ia vender rifa pra ajudar na construção do colégio.
Eu estudei até o quarto ano no colégio, mas nunca gostei de estudar e vou dizer com toda sinceridade, eu era a pior aluna da classe (risos). É chato falar, hoje eu reconheço, tirei diploma com a nota mais baixa da turma. Eu sempre gostava de falar muito na escola, sempre fui muito faladeira e as irmãs eram muito bravas, exigentes o que era ótimo porque aprendemos muita coisa. Hoje me irrita ver os jovens não darem lugar pros mais velhos e a gente ouvia muito as irmãs dizerem que tínhamos que respeitar os mais velhos, dar o canto, ajudar atravessar a rua, coisas básicas de educação elas martelavam muito com a gente. 

Foi um período bom na minha vida, mas eu gostava mesmo era de brincar na rua, eu era moleca, gostava de brincar com os meninos. As brincadeiras eram Barra Bola, na rua. Barra bola era assim: ficava uma turma de uns quatro ou cinco de um lado e outra de outro lado e tinha um risco no meio dividindo; uma equipe jogava a bola e o outro lado tinha que pegar no ar, se pegasse era ponto e passava pro outro lado. Se não pegasse, o que havia passado de lado corria jogar, pra poder trazer mais ponto pra esse lado, que havia passado, era uma delicia.


Brincava de Pais (pega-pega), quanta brincadeira, como a gente brincava! Tudo sem malicia, tão puro. Sempre tinha dois blocos separados, a gente ia se esconder e a outra turma tinha que achar. A gente se escondia em cada lugar, no porão das casas, da casa dos seus nonos, na casa do Mário Corsi, a gente se enfiava nos porões e quintais com os meninos, seu pai Hélio, o Wilson, o Constante Capuzzo, o Zezito, Sérgio, então era um time de meninos e meninas, de noite porque de dia tinha que estudar e trabalhar, então a gente brincava de noite, era muito bom.
O meu irmão mais velho, o Valdemar e eu íamos brincar num morro ali perto de onde hoje é a Praça dos Expedicionários, não tinha nada, a gente brincava de escorregar no morro  de terra com um papelão, eu sempre fui muito moleca, sempre tive brincadeiras de homem mesmo, acompanhava meu irmão, ia escorregar e um dia voltei com a calça toda rasgada, apanhei né, porque a gente apanhava.
Brincava também de Peteca, Amarelinha, tudo na rua, que era de terra batida. A gente vivia esfolada porque caía.
A Rua Rui Barbosa antes tinha a casa do Vitório Tozzi, que derrubaram, a casa da Yarinha; a do Antônio Paulino ainda está aí, a casa da Dona Serafina e o Sr. Moretti também já demoliram faz tempo, a casa do Quinzinho Gomide, pai do Memá era pegada com a do Moretti, a casa do Remo Moretti e a Barbearia embaixo, a porta da barbearia que tinha um vidro colorido nós achávamos lindo.
Muita brincadeira, a infância durava muito tempo, 14 anos e a gente ainda brincava nas ruas. Foi uma infância, que apesar de difícil, porque me lembro de que a vida era dura, comíamos duas vezes por dia somente, era apertado, tínhamos o necessário, mas brincar, os amigos era o que a gente tinha de gostosura na vida e compensava se faltavam coisas básicas dentro de casa.
O quintal da nossa casa era muito grande, dava fundo na Praça da Matriz, onde ainda tem a casa do tio do Zé do Nino, onde embaixo fica uma papelaria, Xerox, em cima era a casa da dona Cila e Sr. Zico Lima, que não tiveram filhos e adotaram todos os sobrinhos, então a gente vivia muito ali. Um muro que separava os nossos quintais e muitas e muitas vezes a gente pulava o muro pra ir brincar lá, eu era muito amiga de Yolanda a irmã do Zé do Nino. A gente pulava de cá pra lá, eles de lá pra cá e a gente brincava muito.

Adolescência/ vida adulta e o Cinema

Quando eu tinha 14 anos o Vasco casou-se com Nezita e foi uma fusão de famílias muito boa. Foi uma graça muito grande que tivemos, de poder conviver com a família de Dona Amazilia Ribeiro Lopes , então começou um período diferente na minha vida porque eu tinha saído recentemente do primário, com 12 anos e fui aprender costura, porque eu não gostava de estudar, então minha mãe disse: vai aprender costura porque tem que ter uma profissão, você vai aprender a fazer calças masculinas (risos), tinha que ser isso, não entendi por que. E eu fui e aprendi com uma costureira, a gente era chamada de Aprendiz e fiquei muito tempo indo como aprendiz na casa de uma pessoa que eu amo muito e tenho muita consideração e que teve uma grande influencia na minha vida, a Sra. Olivia Brossa, ainda viva, com 96 ou 97 anos, que mora ao lado do Grupo Escolar Dr. Bernardino de Campos.
Fiquei muitos anos costurando, aprendi e comecei a fazer calças e ganhar dinheiro. Muito tempo eu fazia lá mesmo, depois que tivemos que mudar (da nossa casa velha, onde nascemos e moramos até fazer o Cinema, a casa era onde é o cinema).
Minha mãe nessa época tinha uma lojinha, ela gostava muito de comércio e tinha uma lojinha de roupas feitas nessa casa. Enquanto construía o cinema a loja mudou pra um cômodo de frente na casa do Sr. Remo Moretti, que ele cedeu pra nós, então eu vim costurar na loja, trouxe minha máquina e eu cuidava da loja e costurava.
Foi suado pra comprar a máquina, era de segunda mão do Sr. Lauro Pezzota, que vendeu facilitando muito o pagamento e a gente trabalhava pra pagar a prestação da máquina, que eu tenho até hoje.
Trabalhei muito tempo até o Cinema ser inaugurado. Quando o cinema foi inaugurado nossa vida mudou pra melhor, mas daí, eu fiquei mais tomando conta da casa, porque nessa época minha mãe já estava doente, idosa e fiquei quase titular da casa e também o Bar do Cinema, que foi a minha vida. Cuidei desse bar por 40 anos e a vida foi melhorando, voltamos a morar aqui...
Enquanto o cinema era construído a esposa de Vasco e as duas filhas Cristina e Lucia foram morar na casa de Dona Amazilia e eu e minha mãe ficamos na casa de minha outra irmã, que morava na Rua Comendador Inocêncio ficamos lá três ou quatro anos até construir o cinema. A casa da Da. Amazilia era coração de mãe, era uma casa tão pequena, mas que acolhia todo mundo e eles davam jeito pra tudo e pra todos. O Zé Roque, filho de Vasco, que construiu a Vaca mecânica e já é falecido nasceu nessa época, em que eles moraram na casa da Dona Amazilia. Depois que a casa ficou pronta, essa casa que tem passagem pro cinema, voltamos a morar todos juntos, eu, minha mãe e Vasco com a família.
Então saímos da casa velha em 1948 e voltamos em 1951.


                                                      casa na R Rui Barbosa 


Inauguração do Cinema São José

O cinema foi inaugurado 19 de Março de 1951.
Foi uma fase áurea da nossa vida, uma fase muito boa, financeiramente também ficou melhor.  
Os primeiros dois anos foram mais difíceis porque tínhamos que pagar as dívidas, da construção, que foi feita com muito sacrifício, então tinham dividas a pagar.
A fachada do cinema foi Vasco que fez inspirado na Arte moderna, não sei se foi ele que pintou, mas ele criou.
Desde que o Vasco nasceu ele queria um cinema, desde pequeno ele era louco por cinema e lutou a vida pra isso e conseguiu e foi muito bom pra ele, a vida dele era o cinema. De tanto que ele queria, as coisas foram aparecendo.
O engenheiro que projetou era meio parente, o José Cruz, fez a planta, mas tudo, sob orientação de Vasco.








O cinema ficou muito maior que o antigo Teatro São João, porque juntou o terreno com outras casas vizinhas, pra construir e muita gente ajudou. Porque o Teatro São João era patrimônio da prefeitura, Vasco conseguiu comprar, o prefeito da época vendeu, era um dos Tagliasacchi. Houve muita colaboração das pessoas pra que essa obra saísse.



Os aquários, as decorações nas paredes, as luminárias tudo era ideia de Vasco, que nasceu em 22 de novembro de 1910.

Bar do cinema                                            
   



Desde a inauguração eu, minha mãe e a cunhada de Vasco ficamos sócias e tocávamos o bar do cinema. Vendíamos groselha, era da Dubar e é um sucesso até hoje era somente água e groselha nada mais, mas as pessoas adoravam e também chocolate quente, eram o forte do Bar. Vendíamos pedaços de bolo, balas, bombons, quando saiu o drops Dulcora, nós vendíamos e era um sucesso e tinha refrigerante também. Depois de algum tempo aprendemos a fazer amendoim com açúcar, que se chama chebréu e o cheiro contagiante, vendia muito.

Inauguração





O primeiro filme que passou no cine São José foi “Deus lhe pague” um filme Argentino (título original "God bless you", de Luis César Amadori, lançado em 1948) teve boa bilheteria e foi a primeira renda do cinema, que o Vasco doou pra Obra assistencial de São Roque, porque D. Amazilia era muito envolvida com a Obra assistencial e como no momento, ambas as coisas eram muito importantes, então ele doou a primeira renda da bilheteria.
O Cinema teve tantas coisas boas, enchia toda noite, durante a semana, nos fins de semana tinha duas seções e domingo tinha ainda a Taba (de manhã) para crianças e a Matinê à tarde para os adolescentes. Então tínhamos frequentadores assíduos, parece que era uma família, pois todo mundo vinha e conhecia a gente.
Vasco também era sócio do Cine Central, depois que o São José começou a engrenar ele deixou a sociedade lá.

                                                    platéia no dia da inauguração
                                                                     filme "Deus lhe pague"
Filmes

Em 1951 era o auge de Hollywood, quando começaram as grandes produções cinematográficas, como Ben Hur, Os dez mandamentos, Noviça Rebelde, Dançando na chuva. Também teve a época dos filmes de faroeste e os que lotavam o cinema eram os filmes do Mazzaroppi, tínhamos que por cadeiras extras.
Teve um filme feito por pessoas da cidade, que foi campeão de bilheteria “Balas encravadas’, ficou 2 dias em cartaz e foi necessário sair com um carro na rua avisando pra não virem ao cinema, porque não tinha mais lugar”.
Então logo no começo do cinema as seções enchiam. Rebecca ainda é o melhor filme que vi na vida. Depois os faroestes, com John Wayne, Ronald Reagan. Foram muitos anos, que exibíamos as grandes produções de Hollywood Cecil B. de Mille, Hitchcock. Em algumas ocasiões o pessoal ficava no chão, no corredor, porque lotava tanto, quem não tinha mais cadeiras extras.
Vasco é quem desenhava os cartazes, ele teve muitos amigos bons, que o ajudavam muito e colaboravam com a gente. Eram empregados, que se tornaram amigos, amigos mesmo, Osvaldo Perino, Lucindo. Sr. Demerval, que foi porteiro por anos e anos, Sr. Elílio Franceschi, que foi bilheteiro por muitos e muitos anos, pessoas leais, amigas. Vasco foi assessorado de gente muito boa, por isso deu tudo muito certo.
Então essa época foi muito boa, porque acabamos de pagar as dívidas e a vida melhorou, nós pudemos viver mais folgados financeiramente, com muita união e festa. Vasco gostava muito de reuniões familiares e de festas. Ele era muito social.
O cinema começou a entrar em crise, quando veio o vídeo cassete, no final dos anos 90, mais ou menos, não me lembro tão bem.
Quando o cinema estava bem, Vasco comprou a loja do Verani, então ele também trabalhava lá e quando o cinema acabou, ainda tínhamos a renda da loja, onde ele trabalhou muitos anos. Vasco faleceu em 2009.
Nós criamos muitos laços de amizade com o Cinema e eu também na Igreja fiz muitas amizades.
Eu, a Sra. Julia Ambrósio, Dona Nana e uma sobrinha dela, fomos as primeiras a fazer os pastéis da Festa de Agosto, montamos a primeira banca de pastéis, que ficava em frente à Casa Assumpta, onde hoje é a loja Rogério calçados. 



Eu ganhei uma máquina de fazer macarrão e levei pra barraca, fazia a massa em casa e levava na barraca, abria a massa, Dona Julia recheava e Dona Nana fritava, ficávamos o período da festa, mais durante a novena. Isso já deve fazer uns 60 anos, mas vendemos pastéis por poucos anos, depois a festa começou a crescer e exigia mais estrutura. Em 1954 Vasco foi festeiro e inovou trazendo tacho esmaltado, elétrico, antes a gente fritava numa panela grande.
Eu sempre fui muito ativa na Igreja, fui muitos anos Filha de Maria, que era uma Associação de moças solteiras, era o culto a Nossa Senhora, era uma associação bem séria. Fiquei muitos anos nessa associação, participei da diretoria também, depois o auge da minha vida foi o Clube de mães. Sempre fui dada às obras assistenciais, meu temperamento é de trabalhar nisso.
Aqui em São Roque foi nomeado um vigário, Monsenhor Vito e nessa época (entre anos 50 e 60) ele veio com ideias novas, era muito inteligente e modificou as coisas e criou o Clube de mães, então eu e mais algumas pessoas fomos convidadas pra participar de um treinamento. Veio de São Paulo uma freira pra treinar as voluntarias do Clube de mães, foi o primeiro Clube de mães de São Roque, eu, Cinira, dona Vanda e mais uma ou duas amigas.
A primeira sede era no Cambará depois todos os bairros tiveram clube de mães, éramos pessoa jurídica, recebíamos donativos e treinamentos, então na minha vida foi um período muito bom, me realizei com isso, ficamos lá por uns 30 anos depois deixamos umas voluntarias lá e passamos pro Santo Antônio, formamos outro clube. Depois as voluntarias mais velhas foram morrendo e não houve renovação e também o espírito da obra assistencial foi mudando.

Lazer

Eu frequentava muito pouco os bailes, porque eu fazia parte das Filhas Maria, cuja condução era muito rígida era como um apostolado de uma freira, as regras eram duras, eu não uso calça comprida até hoje por isso, me acostumei.
A gente ia passear na Praça, as roupas que eu usava eram minha irmã Neris que fazia, eu fazia calças de homem, a gente costurava pra alfaiates porque os homens usavam ternos, então a gente fazia calças de casimira inglesa. Os tecidos geralmente eram trazidos pelos clientes e eu costurava pro alfaiate.
Minha vida amorosa, bom eu não tinha temperamento pra casar. Minha vida foi muito pura, aberta, com muito carinho, amizades, que é o que eu mais prezo na vida, porque temos que ter amigos, vida social.



Como mensagem digo que temos que ser solidários, amar o próximo, por isso eu tenho disposição nessa idade, porque eu amos as pessoas. Ame e será feliz.


Ter dado esse depoimento foi algo muito bom, fiquei muito feliz de você querer me entrevistar, eu tinha admiração especial por sua mãe, que era uma pessoa forte, pessoas como ela, marcam a vida da gente.
Muito obrigada por pedir pra eu registrar minha história.

                                                                               
                                                                          Fachada do cinema


                 
fotos do interior do cinema:  acervo de Luis Guilherme Campos de Oliveira  
fotos fachada -família e Iris: Denise Boschetti     
demais fotos: acervo do extinto gruo do facebook-SOS Patrimônio Histórico de São Roque 
                                                 
Organização e edição: Denise Boschetti

                                                         
                                                                                           
                                                       



                  f 

                                                                                                                 

sábado, 9 de fevereiro de 2013

Depoimento Zé do Nino


Meu nome é José Carlos Dias Bastos, mas meu apelido, como todos conhecem é 
Zé do Nino.



Eu nasci, aqui em São Roque, nesta casa, onde estamos fazendo essa entrevista, que fica na Rua Rui Barbosa 277. É uma casa muito antiga, da nossa família; o documento que temos é de 1860, aproximadamente.
Nós procuramos conservar como ela é, feita de taipa e pau a pique, com algumas reformas com o tempo. 

saída para o quintal da casa
A fachada da nossa casa atrai, porque realmente é bonita, é diferente, hoje em dia não fazem mais com todos esses detalhes.
Ela foi reformada em 1920, meu pai tirou a parede de taipa, como era costume; o telhado ia até o meio da rua quase, ele calçou a casa e construiu essa parede já de alvenaria, com essas molduras. Tem até um nome  parece, que é arte-republicana, da época da República, quando teve mais dessas construções com molduras, balaustres. aqui em São Roque, quase todas as casas eram assim, mas o “progresso”, não dá pra segurar e vão derrubando tudo e fazendo umas coisas quadradas, que não tem vida, não marcam. E hoje em dia, essa casa chama muito atenção.


Fachada da casa Zé do Nino
Eu nasci no dia 6 de agosto de 1933, num domingo, às 8 horas da manhã. E sempre no primeiro domingo de agosto é a abertura da Festa de São Roque, com a entrada dos carros de lenha, então eu estava nascendo aqui dentro e na rua, talvez já estivessem passando os carros de lenha.
Eu brinco que a influência que tenho, de gostar e de participar tanto da Festa é porque eu nasci durante um desfile dos carros de lenha, na entrada da Festa de Agosto de 1933. 

Família / origens

Sou filho de Antonino Dias Bastos e Julieta Eugenia da Silva Bastos.
Do lado do meu pai, o avô era português, José Joaquim Dias Bastos e a avó Barbara de Godói Bastos; ela é da família Godói, de Campinas, família de origem antiga também e ela já é brasileira de diversas gerações.
Lógico que todos nós descendemos, ou de portugueses de outras gerações, um pouco de mistura com índio, então meu avô veio da Cabeceira de Bastos, um lugar em Portugal, ele veio com mais dois irmãos, em aproximadamente 1870.
O meu avô veio, como todos vinham na época, para aproveitar a riqueza do Brasil, fazer a América e trabalhar nas fazendas de Café. E nas fazendas de café do lado de Campinas, que era uma região muito rica já naquela época, ele conheceu minha avó. Casou-se e tiveram três filhos, meu pai foi o primeiro, em 1880 em Itatiba. Meu pai nasceu em Itatiba,região de Campinas.
A minha mãe, a família toda é de São Roque, os pais, avós e bisavós dela, todos de São Roque.
O nome dos avôs maternos é Antonio Eugênio da Silva Cesar, da região do Saboó, Fazenda Saboó. Todos os Silva Cesar vêm desse núcleo do Saboó e minha avó Alzira Xavier de Lima. Todos tinham casa aqui na cidade, mas tinham as fazendas também.
Do meu avô materno, as fazendas no morro do Saboó, e da minha avó era a Fazenda Canguera, mas não Canguera de hoje e sim, onde atualmente é a cidade de Mairinque. A Fazenda Canguera, dos Xavier de Lima, Xavier de Jesus, um cruzamento de famílias com quase o mesmo nome, era o que acontecia antigamente, casavam muito entre si, então essas famílias formavam a fazenda Canguera.
Por situação de herança, a Fazenda ficou pra minha avó Alzira Xavier de Lima e foi ela, quem vendeu pra Sorocabana em 1890, por 60 Contos de réis. Eu tenho a escritura e assinatura da minha avó, da venda dessa Fazenda, porque a Sorocabana já passava no meio da Fazenda.
Aqui em São Roque, a Sorocabana foi inaugurada a primeira vez, em 1875, então já fazia alguns anos (a Sorocabana) devia ter desapropriado algum pedaço da Fazenda. Como os irmãos passaram pra minha avó a herança, negócios de família, ela que assinou a venda. É um documento histórico, não que eles sejam os fundadores de Mairinque, mas foram os últimos proprietários da Fazenda Canguera, onde hoje é a cidade de Mairinque.

                                                              Tropas /  Ferrovia


foto: acervo Bruno de Lucca

A família da minha mãe, todos são de São Roque, os meus bisavós do lado materno, chamavam-se Pedro Antonio da Silva (Pedro do Saboó, era o apelido identificando com o bairro) e a bisavó era Maria Carlota Custódia da Silva. Esse Silva encontra com o Silva do meu bisavô também, são todos da mesma região. 
Os bisavôs paternos da minha mãe eram Antonio da Silva Cesar, ele era tropeiro e aí tem uma historinha à parte. Antigamente, o que havia em torno da Economia era às voltas da Tropa. Faziam viagens, vendiam e trocavam mercadorias, levavam mercadoria pra Santos e traziam Sal de Santos, nos burros, isso acontecia com todos daqui. Não havia estrada, não tinha outro meio de transporte a não ser os burros, cavalos e bois, então foi um progresso até pra São Roque a época das Tropas arriadas, que iam pro Rio Grande do Sul.

O centro desses tropeirismos era Sorocaba, como São Roque é próximo, então havia muito contato e era costume os daqui irem junto, levavam mercadorias, animais e havia um intercambio muito grande. Eles estavam sempre nessas viagens.
A minha Tataravó, Maria Rita dos Prazeres é da cidade gaúcha Passo Fundo. Acreditamos que ele tenha casado lá, ou trouxe-a e casou aqui; também vieram outros parentes dela e se radicaram aqui em São Roque, então eu tenho uma tataravó gaucha.
Eles tiveram 12 filhos, eu tenho o inventário de 1838, quando do falecimento dele deixando o nome de todos os filhos, a idade, a mulher, os bens, a Fazenda do Saboó.

É um documento interessante, que chama muito a atenção porque na época eles tinham escravos. Então tem a relação dos escravos: eles eram registrados em cartório, como se fossem um bem material, tinha o preço que valiam pra negócio; a origem- se eram africanos de Angola ou da Guiné; os partos, alguns já eram nascidos aqui. Interessante esse inventário do meu tataravô, aqui em São Roque.

                                                           Vida rural e urbana

Do lado da minha avó Xavier de Lima, nasceram todos em Canguera, que hoje, como eu disse é Mairinque. E onde hoje é Canguera, antes era Sorocamirim e com a abertura da estrada de ferro Mairinque-Santos, na década de 1920, foram feitas as estações de trem: Goianã, Mairinque e eles puseram uma parada, onde hoje é a estação de Canguera, em homenagem a Fazenda Canguera.
A casa deles aqui na cidade era na Praça da Matriz, aquela casa que tinha perto do Cine São José, uma casa cor de rosa, com terraço na frente, onde é o Plagio (copiadora) hoje, pra dar a referência. Era costume ter as fazendas e casa na cidade e a casa do meu avô materno era ao lado da Igreja. As famílias eram poucas, eles eram participantes da vida da cidade.
As pessoas morriam muito cedo, a única avó que durou mais anos e que convivemos bastante é a Alzira Xavier de Lima, que era dona da casa ali na Praça da Matriz. Ela era uma pessoa, que nos influenciou muito e ajudou a criar todos nós. Era a matriarca da família ela sempre foi muito participativa; os irmãos vinham falar com ela sobre tudo o que queriam e precisavam: doença, festa, casamento, vinham casar na casa dela, os velórios eram na casa dela, então ela ficou o centro da família Xavier de Lima. E como ela morava ali na Praça da Matriz, aquela casa era o centro de toda a família. Ela foi festeira da Festa de Agosto, em 1905, naquele tempo os festeiros eram: uma senhora, viúva ou não e outro senhor, para formar duas famílias e fazerem as festas. Então ela e o Sr. Antonio Henrique Arnóbio, foram festeiros desse ano, as famílias conviviam.

                            Festas de Agosto e a História da cidade têm...

E eu então, desde criança vivi todas essas festas, porque era uma aprontação, era uma espera, a cidade toda esperava pela Festa de Agosto. A gente ouvia a conversa dos mais velhos, “esse ano precisamos pintar a casa pra Agosto”, ou qualquer outra coisa, “vamos deixar pra depois da festa”, “vamos começar a ver os doces pra festa”, todas as casas se movimentavam porque, os que estavam no município, moravam em sítios e vinham pra cidade nessa época e passavam 15, 20 dias. Vinham de fora, parentes e conhecidos das famílias, daqui de São Roque.
Não existiam hotéis, havia somente algumas pensões, o costume mesmo era assistir na casa de alguém. As casas eram grandes, com muitos quartos, não havia tanta privacidade, era o quarto das moças, dos meninos, dos mais velhos. A vida era muito simples.

...Cheiro Cor e Sabor de Agosto

A gente notava que a festa estava se aproximando e começava a chegar gente de fora e então íamos nos apertando mais; eram dois três colchões em cada cama que iam diminuindo, porque iam pondo no chão, e mudava de lugar, porque vinha mais alguém dormir. Um mês antes era aquela movimentação para preparar as coisas. A festa de Agosto é tão importante aqui em São Roque, é a referencia pra nós.
Ela tem cheiro, som e cor. O cheiro já começava com o descascar laranja azeda pra fazer doce, aquele cheiro impregnava; era um doce que se fazia bem adiantado, então começava no mês de julho a descascar laranjas, deixar de molho, aquele ritual todo, vinha gente pra ajudar, as tias, então tudo era festa, era uma vida fantástica, hoje em dia, com todo o progresso vivemos numa correria e não curtimos nada. Então os cheiros são dos doces, dos assados, do pastel, das barraquinhas das baianas, cuscuz, sardinha frita, bolinho de bacalhau, comida típica baiana, e tinham outras também: as barraquinhas de quitandas, amendoim com chocolate, o cheiro do algodão doce, porque essas coisas só tinham nas festas. Eu identificava também, com a entrada dos carros de lenha, o cheiro dos animais, da lenha cortada recentemente, o cheiro marca, até o cheiro do estrume dos bois.

O som era do tradicional rojão de vara, que subia e a gente ficava vendo até onde ele ia soltando as faíscas; som as Bandas, as Alvoradas, as Procissões, os Cantos da igreja, aquelas ladainhas, isso dava um som característico pras festas.  


Praça da Matriz numa Festa de Agosto
E a cor, é que a gente fazia roupa pra festa, ficava todo mundo mais colorido, as cerimônias da igreja, as procissões, cada família enfeitava o andor de um Santo. Aquele Santo combinava com uma cor, então as moças faziam vestidos da mesma cor e os moços também acompanhavam. Aquilo dava um colorido muito bonito pra festa, que é uma coisa muito forte até hoje.

Tinham as barracas de bonecas, que já são mais recentes, mas havia os sorteios, então os pais ficavam ali o dia inteiro, pras crianças ganharem. As mulheres que sabiam costurar faziam roupas para as bonecas, sua mãe, por exemplo, era uma das fazia todos os anos. Isso tudo foi desde a fase da minha infância. 

Família / escola


Sempre moramos nessa casa, aqui moravam 14 irmãos, minha avó, meus pais, mais parentes, então minha casa sempre foi de muito movimento.
O quintal grande, com horta, frutas, criava porco, galinha, até cavalo. Eu não cheguei a pegar o tempo, mas teve ate vaca de leite, que vinha da fazenda do Carmo, dos meus tios avós, e nós soltávamos esses animais, onde hoje é a Avenida Antonino Dias Bastos, o nome do meu pai, onde antes tinha o campo do São Bento. 

Quintal da Casa que dava para a
Rua Pedro Vaz


Naquele campo era o pasto do Comendador Inocêncio e nós soltávamos os animais lá. Eu mesmo, já maiorzinho levava nosso cavalo pra soltar no pasto. Às vezes à noite a gente tinha que levar o cavalo e ficava com medo! A rua acabava ai em baixo, perto da Light já não tinha mais nada era tudo escuro, mas a gente ia. Havia um portão onde hoje está a Rua Pedro Vaz, termina na Avenida, ali era uma porteira que a gente soltava os cavalos, todos que moravam na cidade. Eu acredito que seus avós tinham animais também, uma carrocinha pra transportar, eles tinham um açougue de carne de porco. Era a vida da gente, era o costume.




Escola
A minha primeira escola foi o Colégio São José. Foi um progresso para o ensino, em São Roque, as freiras terem montado o Colégio aqui, na década de 1930, Freiras Vicentinas, eram belgas e vieram com muito sacrifício, lutaram muito, até a primeira casa que elas moraram, ou a segunda, era em frente à casa dos seus avós, ali onde tinha os Maraccini, na Rua Rui Barbosa (hoje um restaurante), que elas ficavam, davam aula, depois começaram a dar aulas na Igreja de São Benedito e assim começou, com a ajuda do pessoal foi construído o primeiro Colégio de São Roque.


foto: acervo Luis Guilherme de Oliveira


O Colégio, a gente chamava de jardim da infância, depois do colégio passávamos para o Grupo, o ensino publico gratuito. Alguns ficavam, as meninas ficavam estudando, porque tinha internato no colégio, as meninas que vinham do sítio e ficavam internas.
Aqui em São Roque, nós temos o privilegio de ter o Grupo Escolar Dr. Bernardino de 
Campos, que foi o primeiro grupo do Estado de São Paulo, de 1894, então marca bem a cidade na época. Porque depois Itu, Itapetininga também fizeram, mas oficialmente com documento, o nosso foi o primeiro. Já fez 100 anos, nós fizemos uma festa bonita em comemoração.







foto: acervo do grupo SOS Patrimonio Histórico SR







                                                                                   Foto atual do Grupo Dr. Bernardino de Campos
Muitos amigos meus formaram-se no Colégio, mas eu fui pro Grupo Dr. Bernardino de Campos, ia de manhã e depois à tarde, já com 7 para 8 anos.

O Grupo envolvia toda a cidade, todas as famílias tinham filhos estudando no grupo, então tinha as festas, os desfiles, a cidade toda tinha algo a ver com o Grupo Escolar Dr. Bernardino de Campos.
Havia algumas escolas isoladas, mas o Grupo foi uma coisa muito importante, que aconteceu na cidade e nós todos estudávamos lá, por 4 anos o ensino primário.
A primeira professora, do primeiro ano, no Colégio foi a irmã Modesta, depois no Grupo, ela não era aqui de São Roque, Dona Adelina Calutti, lembro bem o nome dela, uma moça alta.
Minhas irmãs também lecionavam no Grupo, Ondina, Diva, todas passaram por lá.
A minha segunda professora, Da. Mocinha, filha de Dona Amazilia, mãe do Joel. Depois foi dona Sara e a última, do quarto ano foi Dona Arpálice da família Moura. As fotos que estão no mural lá no Grupo, têm do ano de 1901, a minha mãe está lá, minha mãe, minha tia; tem dos homens e das meninas e todos juntos das famílias da época.
Tinha uma que era sua tia avó, tia do seu pai, Justina Boschetti, também as da família Maraccini, minha mãe falava muito nelas e deve estar o retrato delas lá.
As aulas eram de manhã, a dos meninos e a tarde era pras meninas, as classes eram separadas e mesmo sendo criança, com 7/8/9 anos a gente já ajudava no Armazém. 




Meu pai teve Armazém ali na esquina da Avenida Tiradentes, onde hoje é o Prédio Costa, ali era o armazém. 



Quando foi vendido lá, então nós mudamos o Armazém aqui nessa sala, até pra completar o tempo e aposentar, mas a minha intenção era restaurar e como você está vendo ficou do jeitinho que era a Casa antes, as janelas e tudo.


                           
                                    Armazém do Nino  

         
No Armazém do meu pai, ajudávamos entregar compras, fazer alguma coisinha, nós limpávamos quintal, recolhíamos lenha, criança trabalhava.
Hoje em dia falam que criança não pode trabalhar, não pode ser explorada, mas trabalhar é uma coisa saudável, ser explorada é outra coisa.
Eu fiquei também um tempo depois da Escola ajudando farmácia do meu cunhado Dito Cesar, nós lavávamos vidros pra engarrafar xarope.
Trabalhei na loja do Alceu, na esquina onde é o Prédio Pontes, naquela portinha que tá aparecendo na foto, sabe?(mostra a foto), naquela casinha ali. Ele tinha uma loja de ferragens eu ajudava, e o que eu digo, dava tempo das coisas e a gente nunca deixou de brincar.

A minha infância foi muito marcada na Fazenda do Carmo, uma fazenda muito grande dos meus tios avós, que existe até hoje, mas não é mais dos meus parentes. Não só eu, mas todos da família, desde o tempo da minha mãe já se passava temporadas na Fazenda, era uma coisa diferente, era outro mundo não tinha divisa, você nem via vizinho, de tão grande. E tinha os últimos escravos ainda, filhos de escravo, que contavam as histórias, aquela Fazenda com Gado, tudo o que tem numa Fazenda e a gente possa imaginar tinha ali. Convivi muito na Fazenda com muita gente, muita conversa muita prosa.


Tinha uma cozinha enorme, no meio tinha um cimentado, com tijolo, porque o resto era tudo meio terra batida e ali toda noite era feito uma fogueirinha, dentro da cozinha e sentávamos todos em volta e contavam aquelas histórias.
Aquela foto é da Nhá Marica, que era Dona dessa Fazenda, quando ela morreu nós estávamos lá ainda. Os meus tios, que eram os últimos donos lá, porque ia passando de um pro outro.

             
Nhá Marica,  última proprietária da Fazenda do Carmo
Então essas coisas que marcaram muito a minha infância, a Fazenda do Carmo, os meus tios avós eram os meus padrinhos, então eu tinha muita admiração por eles. 
Ruinas da Fazenda do Carmo
acervo: Jornal O Democrata





Meu padrinho, o Juca Xavier de Lima casado com Virgínia de Oliveira Santos, tia do Juca de Oliveira, era irmã do Tonico 60.
Então o Juca na minha idade mais ou menos, nós passávamos nossas férias juntos lá no Carmo, vinha o pessoal de Sorocaba, os daqui, juntava 20, 30 crianças, dormiam todos naqueles quartos, voce imaginou o que era a nossa vida lá? Uma maravilha, mas tudo tem seu tempo. 
Meu apelido Zé do Nino, vem dessa época, porque tinha muito Zé. Zé do Dito, do Nhozinho, então puseram Zé do Nino, meu pai, pra identificar e ficou.

Depois eu entrei no Ginásio em Sorocaba, Ciências e Letras, mas aí faleceu o nosso irmão mais velho, era nosso primo, mas foi criado aqui em casa como se fosse nosso irmão mais velho, o Alceu. E daí houve uma modificação, meu pai ficou sozinho na venda e resolveram em família, me tirarem do Ginásio pra ficar trabalhando e ajudando na venda porque os outros já estavam estudando mais adiantados e já para se formarem.
Na época nós íamos e voltávamos de trem pra Sorocaba, todos os dias, mas ia um colosso de gente daqui, ficávamos o dia todo lá. Sorocaba não era longe, levava uma hora e pouco, ia de manhã e voltava à tarde, o trem ia cheio e ficávamos o dia todo na escola.
Aí eu parei. Eu não ligava muito pra estudar, deixei e vim, eu até devo ter gostado. E fui ficando, tomando conta do Armazém, eu tinha 14 anos em 1947 e então fiquei no Armazém a vida toda, deu certo. Meu pai já tinha bastante idade e não houve uma necessidade dele fechar o Armazém, demos continuidade. Depois ele faleceu, o prédio foi vendido então nos mudamos prá cá, você chegou a conhecer o Armazém aqui, ficamos bastante tempo, depois meu irmão aposentou-se e eu também me aposentei. Aqui funcionou até 1983.



Entrelaços familiares

Como eu disse, ele nasceu em Itatiba e minha avó tinha um parentesco com os Rosa aqui de São Roque, da família do Barão de Piratininga, mas a ligação era maior com a família do Comendador Inocêncio, que era desse prédio antes do prédio Costa, era um Sobradão, onde foi a venda velha, que foi derrubado no inicio da década de 1960. Esse tio do meu pai, que era parente do Comendador Inocêncio, o tio Albano, trouxe meu pai emprestado pra ajudar a tomar conta dos negócios do Antonio Francisco, o filho do Comendador, que já estava velho, doentio, não tinha muito tino pra negócios, então precisavam de alguém que viesse ajudar e meu pai veio provisório.
Ele contava que veio a cavalo de Itatiba, passou por Campinas, e era pra voltar a cavalo, mas foi ficando, ficando, se entrosou muito bem aqui, minha mãe também já frequentava o Sobradão, as famílias já tinham uma ligação grande e se conheceram naturalmente. Isso foi em 1898, que ele veio pra São Roque, com 18 anos.
Aí ficou essa venda com ele e foi até 1962, quando ele faleceu e nós continuamos sozinhos até 1983.  
Essa venda foi uma das mais antigas e era um centro de reunião, meu pai continuou com o comercio, continuou tomando conta das coisas, então ficou assim, meio herdeiro da influencia do Comendador Inocêncio. Ele tomava conta dos terrenos, os filhos do Antonio Francisco eram pequenos, meu pai participou do crescimento das netas do Comendador, que já faleceram também, mas elas nos consideravam como da família, meu pai, como se ele fosse o pai delas. Então há uma ligação muito forte com a família Rosa do Sobradão. 


foto: acervo Luis Guilherme de Oliveira
                                               

E meu pai com essa influencia do ambiente de São Roque, já bem tradicional, casou-se com minha mãe que também era daqui e ele dominou um pouco a situação porque ele era muito prestativo, serviçal, então ele ocupou um colosso de cargos, nos Clubes; foi vereador diversas vezes, foi vice prefeito, delegado, por mais de 25 anos. Tinha o delegado nomeado oficialmente e os delegados da região, então meu pai foi um deles por muito tempo. Sr. Rino Boccato também foi, diversas pessoas foram, aqui era costume.
Ele foi muito político, qualquer coisa que acontecia, as reuniões eram no Armazém. Como prefeito ele tem diversas citações, antigamente era eleita a câmara, tantos vereadores e depois os vereadores escolhiam um vereador pra ser o prefeito e outro pra ser o vice, era uma eleição fechada (risos). O pessoal votava uma vez pra eleger os vereadores e depois lá eles se elegiam.
A cidade era pequena, então ele foi diversas vezes vereador, por muitos anos, eu tenho placas dele aí e nessa vereança, duas vezes ele foi vice-prefeito e assumiu.
Numa das vezes, eu ouvia falar muito na Revolução de 1924, que a cidade ficou vazia, todos fugiam para os sítios do Tenente Isidoro. E nesse ano, minha mãe foi festeira de São Roque junto com o Padre Pepe. E na Revolução, meu pai assumiu a Prefeitura, porque os outros saíram. Essa casa aqui ficou quase como um quartel de resistência, de prontidão, pra acudir as famílias, porque estava faltando alimentação e ele tinha o Armazém, então formaram uma comissão pra haver uma autoridade aqui na cidade e ele ficou como Prefeito. O juiz, e um grupo grande, foram pra São Paulo conversar com o Tenente Isidoro e dizer que aqui era uma cidade pacata, pacífica, que não queríamos ser molestados e que conseguissem mandar as coisas pra cá, para que não faltassem gêneros de primeira necessidade.
Falavam muito que meu pai era delegado só de “soltar, não era de prender”, porque qualquer coisa vinha aqui e ele ia e soltava.

Amigos e vida social

Sempre tiveram as turmas. Quando criança os amigos eram o Helio Chad, os Habibs, os Boschetti, Odilon, Roque era menino, seu pai, Hélio já era mais velho, a família do Caio Pontes, mas nós tínhamos amizade com todos. As casas, de todos eram enormes e tinham os quintais também grandes.
Eu continuei no Armazém ajudando meu pai. A família sempre participou de tudo, de Igreja, clubes e eu também segui o caminho. Comecei no São Paulo Clube, fui eleito pra ter participação na Diretoria e ali a gente começou, depois veio o Grêmio, participei junto com outros, da Construção do Grêmio, mas a minha maior participação na vida social mesmo foi no São Paulo Clube, por diversos anos. Ficava em cima do antigo Bios Bar, tinha carnavais, bailes, era um clube gostoso.
A Literária que ficava na Praça da Matriz, o prédio existe até hoje, ao lado do antigo Bar Bacana. Então era a Literária e o São Paulo Clube.
Esses dois clubes foram até 1963, quando houve a união dos dois e formaram o São Roque Clube. Nós continuamos a participar da diretoria e da construção desse Clube, que tem aí até hoje, trabalhamos muito lá. Eu fiquei lá até anos 80, fizemos muitos bailes e muitos outros eventos e cursos. Éramos um grupo.

Os Clubes marcaram muito a cidade, a Literária é o mais antigo vem desde 1890 e na época foi importante ponto cultural, era um clube pra cultura, Saraus, era uma coisa avançada. Eu tenho um estatuto da Literária com a lista dos sócios, acho que de 1920, e hoje, quando eu mostro, são quase todos os nomes de ruas.
Clube Literária
inauguração do São Roque Clube

O São Paulo clube já representava mais os jovens, a mocidade, que eram Vasco, Nino Biazzi, Nenê e eles também dirigiram o São Paulo Clube, que foi fundado em 1935. A nossa turma foi assumindo depois e fiquei por anos, como presidente.
Quando houve a união passamos a trabalhar para o São Roque clube e paralelamente também para o Grêmio, que era uma turma mais do Esporte, e eu particularmente já não tinha muita ligação, mas participei.
A minha ligação era mais com a parte social, promover festas, Bailes, todo domingo tinha brincadeira dançante. A vida era assim, 7h15m começava a brincadeira dançante, imagina se hoje alguma pessoa sai nesse horário? Não sei por que 7 e 15, mas era. A música era tocada na vitrola, algumas vezes alguém tocava ao vivo. E os bailes, sempre tiveram: Baile da Primavera, Baile Branco, Bailes de Agosto, sempre foram um sucesso. Havia uma rivalidade entre a Literária e o São Paulo Clube.


Orquestra Sinfônica  Municipal
foto: acervo SOS  Patrimonio Histórico de SR
Naquele tempo as orquestras eram formadas por grupos daqui mesmo, tivemos orquestras maravilhosas - O Columbia, Conde di Torino, Liberdade.

 Rei Momo/ Zé Pereira e Lança-perfume

Os Carnavais eram maravilhosos, foram lindos. E também começava cedo, 7, 8 horas saíam os cordões na rua, a orquestra na frente tocando as marchinhas maravilhosas da época e iam fazendo serpentinas no Largo da Matriz. O Largo cheio, o povo de todas as classes sociais vinha e vivia o carnaval; os clubes saiam nas ruas, então tinha muito que ver. A vida da cidade era na Praça. 
Havia os grupos que iam esperar o Rei Momo na Estação de trem, ele vinha de carro alegórico até a praça. Mas saia um cordão da Literária, um do São Paulo, às vezes vinha um do Ferroviário, que era um Clube mais popular, então enchiam o Largo de música.


      Foto: acervo SOS Patrimônio Histórico SR


                                    
               Foto: acervo Luis Guilherme de Oliveira
obra :Darcy Penteado
                  
                                                                            

Uma coisa que só depois eu fui entender mais. Nós usávamos Lança-perfume, era normal. Não era proibido, tinha as banquinhas pra gente comprar, as farmácias, se comprava em todo lugar e era um cheiro maravilhoso. Até as crianças de colo usavam, os pais compravam e davam pras crianças.
Todo mundo tinha sua ampola de lança perfume, de metal, de vidro, a gente espirrava na perna das moças, nas costas. O Lança-perfume era uma das coisas importantes do carnaval, depois eu vim saber, que é um éter que forma uma nuvem invisível, em qualquer ambiente meio fechado, não evapora e por isso dava uma euforia nas pessoas sem perceberem, então todo mundo era alegre.
As brigas não eram nada demais, todos estavam a fim de se divertir, saía um ou outro empurrão, era um pega-pega, mas na mesma hora já acomodava e pronto, continuavam a brincadeira. Eu depois vim a entender a euforia dos carnavais antigos, uma parte era pelo lança-perfume, que o perfume delicioso ficava pairando no ar. 

Carnaval no antigo Cine Central
Foto: acervo Glauco de Paula Santos


As crianças não podiam entrar nos clubes, mas a gente ia espiar e participava de tudo. Vasco sempre enfeitou o carro alegórico que ia buscar o Rei Momo, que primeiro ia a São João e depois vinha de trem e era uma chegada triunfal.
Os cordões, o Zé Pereira era uma delicia, aos domingos à tarde começavam a sair então à gente corria pra ver. O gostoso era ver o pessoal se arrumar se reuniam numa casa aqui no centro, todos entravam com liberdade. As donas de casa começavam a abrir gavetas, tirar roupa antiga, para os homens, que iam vestidos de mulher, mas era tudo improvisado, arranjava cabeleira, cada um saía de um jeito, mas era tão natural, espontâneo. Isso foi por muitos anos.
O mais famoso Zé Pereira aqui é o João eletricista, ele morava no morro Sorocaba, tinha um toque especial do Zé Pereira, que acabava com os outros. Tinha diversos meninos, que tocavam uniformizados, naquela elegância, faixas turbantes, mas o toque era lindo e ele ficava quase o dia todo na cidade e a gente ia atrás. Eu, quando era menino achava que ele era o verdadeiro Zé Pereira, de tanto que ele representou.
Minha participação nos clubes, na parte social foi uma vida inteira praticamente, largava os negócios pra cuidar do clube.

Participação Política

Depois de muito tempo teve uma renovação na política, com a turma do Mario Luis, ele foi eleito a primeira vez, depois na segunda vez eu participei mais, formamos um grupo grande, era gostoso trabalhar com ele, pois. Mário representava um ideal pra gente. Depois da campanha, que foi vitoriosa eu continuei ajudando na Prefeitura.
Ai eu desliguei um pouco do Clube, foi de 1955 até 1983. Eu tinha um cargo na parte de Turismo, na segunda gestão em 1983. Era um assessor, quase que direto. Depois tive um cargo na Cultura, mas não remunerado, nunca ganhei um tostão na Prefeitura. Quando me aposentei fiquei uns 6 anos com Mario e com Zito Garcia, isso foi até 1992.
Na gestão do Mario foi criada a Feira permanente, em 1983, que fazíamos todos os domingos, onde era o recinto da Festa do vinho. Seu tio Roque participou muito, ele tinha o serviço de som. E tinham atrações. A feira foi muito importante para São Roque porque dava oportunidade para os produtores da região, artesãos, artistas, todos se apresentavam e o lucro era de cada um. Depois começamos a promover festas juninas, julinas, festa da alcachofra. 
Depois creio que já foi na gestão do Sanches começou a Expo floral, lá na Brasital, mas eu já não estava diretamente, ajudei com o grupo do Vasco, Murilo, Lucindo, que eram artistas, aprendi muito com eles.
Depois da prefeitura eu participava da Festa de Agosto, porque todo mundo participava, ajudava a enfeitar barraca. Quando eu estava na prefeitura e Mario dizia pros festeiros, que eles podiam pedir o que precisavam que eu resolvia. Eu ficava apurado porque tinha que me virar pra fazer o que era possível. Ajudava a trazer bandas de fora.


fotos: acervo jornal Se a Radio não toca

Em 1975, com Vasco e Lucindo começamos a fazer os tapetes ornamentais e não paramos até hoje, durante o ano eu vou coletando, 800 sacos de serragem, que fica guardada, vêm um pessoal do Bairro Rio Acima, uma família, vem ajudar a tingir a serragem. Passam o dia tingindo, a prefeitura busca e leva, ficam 15 dias tingindo a serragem para os tapetes.




    
moradores da cidade participando na confecção dos tapetes
 Aqui em casa sempre foi naturalmente um ponto de encontro de parentes e amigos, assim como todas as casas. O pessoal que mora fora, fica esperando a festa pra vir e encontrar todo mundo. Seu tio Odilon adora aqui, inclusive ele escreveu um artigo bonito pra nós A Casa Aberta.
Hoje já não tenho mais condições de oferecer almoço pra todos como antes, então foi simplificando, é apenas sanduíche; um traz uma coisa, outro traz outra. O forte ainda, por tradição são os doces, sempre fizemos. Tem pessoas de fora que ajudam, minhas sobrinhas ajudam, tem doceiras de confiança. São doces que o pessoal gosta doce de abóbora, cocada amarela, doce de batata roxa, estamos mantendo porque todos dividem. Os amigos têm sempre um grupo unido, que participa de tudo, nas bebidas, porque vai bastante, então pra não sobrecarregar e poder continuar. Porque as portas são abertas, quem pode ajudar venha, quem não puder também pode vir. Entra gente, que nós nunca vimos, entra come, agradece. Passa aí, vê aberto e entra, pensam que é Museu começam a visitar e entra na festa. Essa tradição naturalmente foi ficando e espero que continue. Tenho prazer e orgulho de continuar servindo. O ponto da casa é importante, fazemos os tapetes, você também já ajudou, quando morava aqui, todos se envolvem.

telefone de parede da casa do Zé do Nino


sala Museu casa Zé do Nino


Os carros de Lenha, na abertura das festas, são muito importantes, mas com o tempo foi se perdendo. Em 1985 eu percebi que precisava ter mais alguma coisa.  Fizemos 2 carros alegóricos, dois ranchinhos carregados com primaveras, as crianças participaram e isso deu um alento na entrada dos carros, juntaram mais pessoas pra assistir, criança chama atenção. No segundo ano nós fizemos homenagens às Bandas, fizemos um coreto em cima de uma carreta as crianças vestidas de músicos e a Banda tocando ao lado. Fizemos charretes com arco de flores, para os festeirinhos crianças, foram 12 charretes coloridas. Um ano depois reproduzimos a Igreja de São Benedito numa maquete e a libertação dos escravos, foi em 1989, trouxemos um grupo de capoeira, e outra coisas da cultura negra. Então é isso arranjamos temas.

entrada dos Carros de lenha
foto:acervo SOS Patrimônio Histórico de SR

Em 1989 eu e Cinira fomos festeiros, o tema era Proclamação da Republica, deu tão certo porque todas as escolas municipais de primeiro grau já tinham as roupas da Festa das nações, que havia sido em Julho e fizemos em Agosto homenagem a Republica relembrando a visita de D. Pedro II, aqui em São Roque em 1846, ele pernoitou onde era o sobrado do Barão. Foi muito bonita a chegada da família real em São Roque. Eram 20 escolas representando os países homenageando o centenário da Republica.
Depois começou a ficar mais difícil, em seguida fizemos o que São Roque produzia verduras, alcachofra. Depois fizemos um circo. 
O ano passado (2011) fizemos as maravilhas de São Roque, o Morro do Saboó, o Cruzeiro, a Capela de Santo Antonio, a Igreja de São Benedito, a Estação Sorocabana, a Igreja da Matriz, esqueci um, mas está tudo exposto no Esqui, são maquetes grandes. Esse ano (2012), pelos vitrais da nossa igreja da Matriz, estamos contando toda a vida de São Roque, no dia 31 de julho, que é a entrada dos carros de lenha, que sai do largo dos Mendes.
Estação Ferroviária
acervo: Luis Guilherme C. Oliveira
foto: acervo Luis Guilherme C. Oliveira
Capela de Santo Antonio,pintura de Murilo Silveira



Brasital
acervo Luis Guilherme C. Oliveira

Praça da Matriz
Desenho: Franco Mazzoto
acervo: SOS Patrimônio Histórico SR


Igreja de São Benedito
acevo: luis Guilherme C. oliveira

Vista da Cidade do Bairro jardim Boa Vista




Atualmente estamos tristes porque está acabando toda tradição. Essa parte da preservação do patrimônio está mudando, estão descaracterizando, desfigurando a cidade. 
As nossas encostas ainda estão mais ou menos preservadas, o Esqui foi uma boa aquisição porque fez um parque temático e esportivo. Preservando as encostas ainda é bom, por lei o município tem mais de 40% da mata Atlântica nativas. Isso está um pouco seguro, a parte rural, as chácaras são muito bonitas, as Pousadas. 
Está transformando em um centro gastronômico, as adegas, restaurantes, o que é uma saída para o turismo.
A natureza de São Roque é um presente, mas os pontos ficam distantes, O Saboó é longe do Santo Antonio, a Mata da Câmara fica em um ponto oposto às Adegas, então o que falta aqui em São Roque é a ocupação do Centro com o que é tradicional e da região, o Centro está muito abandonado, tem poucas coisas, dá pra melhorar muito, porque o Centro de uma cidade é o local mais visitado e está muito descaracterizado e abandonado.
Outras grandes perdas foram o Cine São José e O Cine Central, eles eram nossa vida, até os anos 70, depois foi perdendo.

Foto: acervo Glauco de Paula Santos

O que vamos continuar lutando para não perder é a Festa de Agosto, que ao menos durante 15 a 30 dias voltam a reunir as pessoas no Centro, em volta da Praça, nas cerimônias e acontecimentos em torno da festa, promover o encontro das pessoas, dos que moram e dos que saíram daqui.
A festa é importante manter, pois tem romances do Barão de Piratininga, que descrevem essa festa desde 1670, no livro A Assassina ou a Feiticeira, descreve “a cidadezinha, a igrejinha, tocando o sino, a iluminação com latinhas de óleo de mamona; as pessoas dando volta no Largo esperando começar as matinas, que no outro dia é festa de São Roque”.

vitrais da Igreja da Matriz
Foi na Festa que houve a elevação de São Roque a Freguesia, então teve 2 dias de festa, aí é a origem dos 15 e 16 de Agosto e das “fogueiras de taquara, relampejando”, é poético, um trecho pequeno e dá pra você visualizar a cidade na época, que registra o acontecimento da Festa em 1670. Pra traz já tem o fundador que deixa uma obrigação para os herdeiros,     então a nossa festa tem 354 anos. Essa tradição, o cerimonial com os festeiros, que ficam como sendo autoridades nessa época, continua. Os ex-festeiros formaram uma confraria, nós nos encontramos sempre em jantares, tem 160 ex-festeiros vivos.

Morro do Cruzeiro

A mensagem que eu quero deixar pras futuras gerações é que aproveitem as boas coisas do progresso, mas não abandonem a simplicidade, os passeios a pé, de cavalo, nadar em cachoeira. A simplicidade no modo de vestir, de comer; que continuem preservando as amizades, cuidando da cidade. Que não deixem, como fez a minha geração, que viu derrubar a Casa do Barão e a Casa da Câmara e não fizemos nada, temos responsabilidade nisso.


Você precisa entrevistar a Iáia Leandro, que vai fazer 100 anos e  participou de toda vida social da época dela, participou do grupo de Teatro maravilhoso, que tinha em São Roque, ela toca piano, lê jornal, e lúcida.




                    
                               interior da Igreja de São Benedito












Antigo Mercado Municipal 
O progresso é bom, mas às vezes sai muito caro porque abandonamos completamente o que tinha de tradição e se perde a memória, as raízes.


Antigo Casarão do Barão de Piratininga
(demolido)

Eu me senti comovido de você vir me entrevistar porque há pessoas com muito mais experiência que eu, mas é bom porque qualquer época é bom entrevistar alguém, já perdemos Vasco, Lucindo e muitos outros que podiam colaborar com memórias preciosas da cidade de São Roque.




Nota: As fotos postadas nesse depoimento são de diferentes acervos: Acervo próprio, acervo do extinto grupo do facebook SOS Patrimônio Histórico de São Roque, Luis Guilherme Oliveira, Glauco de Paula Santos, Bruno de Lucca, Searadionaotoca, entre outros.
Todos os depoimentos possuem autorização de cessão de imagens.

Captação dos depoimentos, transcrição e edição: Denise Boschetti